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09/12/2024– A felicidade é uma vontade, pai: é preciso acordar com coragem e querer ser feliz todo dia.
Amcle Lima, especial para Francisca
O mais novo, cinco anos, desperta. Pijamas, pés no chão, olhos de sono. O pai, sentado na poltrona, olha para nada. Segunda-feira, primeiro dia de rotina após o acontecido. O pinheiro com a decoração de Natal, ainda está montado na sala do apartamento, mas já é 2005. Os presentes no guarda-roupa. Fora a esposa que comprara: sem coragem de entregar aos filhos. Como se tivesse caído rolando de uma montanha: um câncer silencioso, uma dor lacerante, internação, morfina, Natal na UTI, nem trinta dias desde a descoberta, morte, enterro, segunda-feira. O menino parado na porta da cozinha, de costas para o pai, olha a pia cheia de louças sujas.
Quieto, o homem levanta-se. Começa a organizar o café da manhã. A criança se aconchega no sofá, em meio a roupas amontoadas. Deita-se encolhido, sempre de costas. Em posição fetal, brinca com os dedos na penumbra. Pouca luz invade a sala por uma fresta entre as cortinas. O mais velho acorda e se apresenta para ajudar. Servem a mesa em silêncio. Organizam como podem com o que há de pratos e copos limpos. Pão velho, margarina, café sem leite: tudo é falta.
– Ele não vai comer isso aí, pai, eu sei – diz o rapaz
– Vou ver se acho alguma coisa aberta.
Pega as chaves e sai. Na frente do prédio, uma chuva leve molha a rua. Segue pelas calçadas desertas. Nenhum carro. Nem o mendigo que sempre fica na frente da loja. O primeiro mercado fechado, o segundo também. Já imaginava. Não ia adiantar procurar. Todos na praia, cidade fantasma. O comércio deve abrir apenas pela tarde ou amanhã, entabulou. Sem saber o que fazer: olha a avenida que vai longe. Poderia chorar agora, mas não consegue. A chuva fina já deixa a camisa molhada, escorre pelo rosto. Um vento estranhamente frio para o verão. Se deixa ficar ali olhando a rua vazia, não sabe por quanto tempo.
De volta no apartamento:
– Vou fazer uma torrada pra ele, tá tudo fechado.
O adolescente olha o pai, sem se pronunciar, e sai para o quarto. O homem pega o pão: bastante seco. Passa a margarina, por dentro e por fora. Um pouco de orégano, que sabe, o caçula gosta. Não deixa torrar muito.
– Tá na mesa.
O menino ainda no sofá, cantarolando e brincando com os dedos. O primogênito prepara sua própria torrada, come com o pai. Ao sair da mesa, chama o irmão. O homem, sem saber o que fazer, aguarda calado. Para não se indispor com a criança, decide lavar a louça. Pela janela da cozinha: lá fora a chuva acaricia a rua desolada, lhe concedendo tons de prata. De repente escuta o choro alto do menino. Sentado à mesa, soluçava em frente ao prato com a torrada.
– O que foi?
O pequeno sai correndo em direção ao quarto. O mais velho aparece.
– A mãe sempre tirava as cascas do pão pra ele.
***
Três natais antes da pandemia. Tudo pronto, apenas aguardavam o filho mais velho chegar.
Toca o interfone, Estela atende e desce para receber a visita. Na rua um calor terrível.
– Teu pai tá no banho, logo sai – diz, sorrindo.
Sobem ao apartamento. O rapaz e a namorada, suados, entram: a casa toda arrumada. Cheiro de flores.
– Estela! Você fez muito bem ao pai e a essa casa – diz o mais velho sorrindo. Homem feito: trabalhando, morando sozinho, advogado, carro financiado, anel de noivado.
– Cadê ele?
– Tá no quarto, desde Disse que quer te fazer uma surpresa. Colocou aquela foto no pinheiro.
A mãe: cabelos longos e negros, blusa leve de gola canoa, minissaia. Havia um tempo, ele não conseguia ver as fotografias sem se emocionar. Agora já consegue. Bate na porta do quarto do irmão.
– Oi! Cheguei.
– Já vou aí te ver, espera um pouco, estou ..
– Terminando o quê?
– Uma surpresa – alegria na voz.
Sentados na sala conversando: o pai e Estela num sofá, o rapaz e a noiva em outro. De repente:
– Boa noite!
O silêncio constrange, ninguém sabe como reagir. Estela segura a mão do pai, que endurece o rosto. O que os perturba mais: estar vestido de mulher ou a semelhança com a mãe? Mesmos cabelos longos e negros, que deixou crescer. A blusa, a minissaia branca. O irmão mais velho, sorriso tenso:
– Que é isso?
– Quis trazer ela de volta por uma noite!
– Tira essa roupa – o pai, ríspido. É Natal e não carnaval! Tua mãe está morta, quando é que tu vai aceitar?
– Do que você está falando? Você sabe que não tem nada a ver com a mãe – Não vou tirar nada, ou é assim, ou saio agora.
– Pois então saia!
– Pai, tudo bem, por mim não tem
– Não aceito, ele tem que entender que nem tudo é como ele
– Você não tem o direito de aceitar! Quem te deu o direito de aceitar? Sou assim e pronto!
Acena para o irmão, bate a porta e sai. O pai se retira da sala para o quarto. O rapaz faz menção de sair e ir atrás do caçula, mas Estela lhe segura.
– Deixa assim por favor, deixa eles se Pensei que teríamos uma noite de paz. Quem sabe, mais calmo, ele volta. Só Deus sabe o que temos passado nessa casa.
Mais tarde, calados, os quatro fazem a ceia.
***
– Tá nublado aqui, nem frio, nem Estela ia gostar – conversa com o filho por videochamada.
A segunda esposa não resistiu à pandemia. Idades diferentes: a vacina, lenta, chegou para ele, mas não a tempo para ela.
– Em 2025 a gente passa junto, pai! Vem dar oi pro vô, Julia! Muito frio aqui em Nova Iorque, mas estamos adorando. Tô vivendo um sonho. Natal com neve! Ela já chegou?
– Ele, você quer ..
– Pai, por favor!
– Se era pra namorar com uma mulher, por que não ficou como era?
– Pai! Depois de tanto tempo! Você quer estragar tudo o que eu fiz? Quer passar o Natal sozinho?
– Eles tão lá no quarto, não vão me
– Mas se tu não mudar teu jeito de pensar, de que adianta?
– Ah! Me deixa! Vai dar tudo certo, não vou falar Pode ficar tranquilo.
– E o outro assunto? Vai falar?
– Vou ver, vou .. Oi Julinha! Cadê a mamãe? Tá gostando da neve?
Mais tarde, no apartamento, a mesa posta. Os três conversam, alegres.
Simpatiza com a nora. Conta que Estela fora enfermeira por muito tempo. Não sabe como se referir ao filho mais novo, queria dizer que isso tinha influenciado ela a seguir na mesma profissão.
– Um brinde a Estela, então! Nós duas nos conhecemos no curso de enfermagem.
Contam histórias da infância. Tentam fugir dos tempos de mágoa e fúria, tantos anos sem se ver. Há uma tensão no ar, mas riem, se divertem, trocam presentes. Uma noite leve e feliz.
– A felicidade é isso: momentos felizes!
– A felicidade é uma vontade, pai: é preciso acordar com coragem e querer ser feliz todo dia.
– Pode ser..
– Amanhã a gente sai de madrugada, mas tá tão bom conversar – diz a nora
No outro dia, os papéis do exame no bolso, prepara o café para o filho. Ela entra na cozinha: a semelhança com a mãe ainda perturba.
Só os dois na mesa, servem as canecas. Quer pegar na mão dele, mas só pergunta:
– Quando a gente se vê de novo?
– Você sabe que é longe, pai, mas vou fazer de tudo pro Natal que vem passarmos todos juntos – responde.
Ele suspira e sorri. Levanta-se, vai até a cozinha e retorna. Nas mãos, um prato com uma torrada, que coloca diante dela.
– Fiz pra você.
Ela levanta e o abraça. Foram alguns segundos, mas o que é o tempo? Ao se despedir da filha e da nora, aperta os papéis no bolso enquanto esperam o elevador, mas não consegue falar. Mais um abraço. Ao voltar ao apartamento, liga o rádio para evitar o silêncio pesado da solidão. Apesar disso, está alegre. Joga no lixo as cascas do pão, que retirou para fazer a torrada.
O joinvilense Amcle Lima é colaborador da Francisca; jornalista, com forte atuação na área cultural, trabalha na área de Comunicação do Banco do Brasil, em Brasília