“A arte é uma espécie de jardinagem”, diz compositora joinvilense que lançou clipe

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Amcle Lima

Você já se percebeu lembrando um momento simples, em que nada de especial aconteceu, mas que estranhamente vem a memória como um suspiro de saudade? Não foi uma data marcante (formatura, casamento etc.), não foi uma viagem especial e nem uma conquista importante para as necessidades da vida (casa, carro, promoção de emprego e afins). Nada! Era só um momento… Tipo domingo de manhã, você ainda criança, falando besteiras na cama com os seus pais; tarde de calor em Joinville comendo laranja com farinha com a sua avó; ir papeando com um amigo até a venda comprar algo para sua mãe… Nada memorável, mas você lembra.

Katherine Funke, uma máquina joinvilense de produção artística e intelectual, jornalista, escritora com sete livros publicados, empreendedora da Editora Micronotas, pesquisadora doutoranda em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC), compositora e mãe do Izak (você pode conhecer melhor a trajetoria literária de Katherine aqui numa conversa sem pressa que a Revista Francisca teve com ela), compôs uma canção sobre esses momentos. “Não é preciso entender, este é o momento”, dizem os versos da música em tradução literal. “This is the moment”, composta em inglês, foi lançada em 2019 e, no apagar das luzes de 2020, ganhou um clipe tão singelo quanto a canção.

Construído de forma colaborativa, o vídeo mescla imagens de Katherine feitas no jardim de sua casa em Pirabeiraba e da bailarina Izabela Pacheco Cardoso dançando ao som da música da compositora e tentando evitar que sua gatinha filhote saia de casa e vá para o pátio com cachorros (um dos momentos bacanas do clipe é o dueto de Izabela com a gatinha). O vídeo traz ainda imagens de montanhas cedidas por amigos de Funke e que foram captadas na Patagônia, Argentina; Cordilheira Blanca, Peru; Cume do Vulcão Osorno, Chile e nas catarinenses Garuva e Alfredo Wagner.

“This is the moment” é um folk-rock que abre de forma inusitada com um solo de acordeom, o que dá charme à composição. As guitarras de Marcelo Rizzatti, da banda joinvilense Os Depira, e os vocalizes etéreos de Katherine são outros bons momentos do arranjo. Então aproveite o momento, curta o clipe de “This is the moment” e leia a seguir os detalhes por trás da canção e do vídeo na entrevista inspiradora concedida pela artista.

Você é uma artista solo, mas seus trabalhos musicais são verdadeiras redes de colaboração. A canção e o vídeo de “This is the moment” refletem bastante isso. O vídeo é um mosaico de colaborações… Como você sente esse trabalho colaborativo, quando um artista alimenta o outro?

É um presente e uma das melhores coisas de se fazer música. Na verdade, de se fazer arte, e mesmo de se fazer livros e de se fazer jornalismo, que são as coisas que eu faço e sobre as quais posso falar. Ninguém é uma ilha. Desde o início da minha vida profissional, quando atuava como repórter de um jornal diário em Salvador, Bahia, valorizava muito o faro dos colegas fotojornalistas, editores, dos outros repórteres, e mesmo dos motoristas que já estavam acostumados com determinadas situações. É importantíssimo trabalhar de forma colaborativa, e posso dizer que me sinto uma sortuda por ter todas essas pessoas reunidas no videoclipe. E reunidas verdadeiramente, por sua própria vontade e fazendo tudo com um contentamento compartilhado. A Izabela Pacheco Cardoso fez a dança espontaneamente, no início do período do isolamento, e foi a partir dessa iniciativa que todo o restante se deu. O Adão Eduardo Machado doou seu tempo livre para editar as imagens que, aos poucos, fui enviando. Algumas pessoas colaboraram com fotos e outras com vídeos, e nem todo o material recebido entrou. Sou grata a todos. E a cada uma das pessoas que está assistindo. Estou bem contente porque, em duas semanas, mais de 200 pessoas já visualizaram e me escrevem dizendo o que sentiram. Precisamos muito neste momento do que a música traz, essa coisa das montanhas, de encarar a vida como toda uma estrada pela frente. É momento de visualizar além do horizonte, além dos vales e dos abismos, e em vez de afundar ou nos deixarmos levar por uma maré de medo e incerteza, tentarmos nos colocar nos ombros dos gigantes que já disseram antes que nenhum homem é uma ilha, e que sonho que se sonha junto é realidade.

Você tem dois singles lançados no Spotfy que tem sonoridade próxima (numa levada folk-rock), mas em termos de letra são bastante diferentes. “Convite” é quase uma profecia do isolamento social de 2020 e um pedido para que não atrapalhem a introspecção. “This is the moment” é um suspiro, é uma saudade. Como você percebe a relação dessas canções? Essa necessidade de solidão e, ao mesmo tempo, de convivência que é tão humana e esteve tão testada nesse último ano…

Sua visão é muito boa e já disse tudo, também vejo essas relações muito claras. Vou contar então um pouco sobre a razão de ter gravado essas duas faixas. Essas músicas foram escritas em 2018/2019 e lançadas em 2019. Foi mesmo uma coincidência a letra de “Convite” ter tanto a ver com a pandemia. Quando comecei a gravar, decidi registrar uma canção mais escrachada com um envolvimento mais para o lado dos Rolling Stones, Rita Lee e Raul Seixas, digamos, que foi essa. Mas não queria passar adiante apenas esse meu lado mais irreverente. Tenho um montão de músicas com influências de uma certa profundidade mais existencial, digamos assim, que vão de Joni Mitchell a Wilco, passando por Pink Floyd, mas também Bob Dylan, por Neil Young, enfim, admito que é uma grande mistura de referências. Também queria gravar algo feito em inglês porque tenho alguns amigos de fora do país e gostaria de me comunicar um pouco com esse público também. A maior parte do que componho é em português mesmo. No momento, estou estudando francês e já cometi uns versos arriscados neste idioma tão charmoso também.

Mais especificamente sobre a canção. Como surgiu, qual a inspiração? Ela me parece não falar sobre um amor “romântico” (no sentido de amor entre casal). Confere essa impressão?

A interpretação é livre! Espero que a música soe de modo único a cada pessoa e que possa despertar novas sensações, como a possibilidade de um amor transcendental muito além do que o amor romântico. O foco da canção, bingo, não é mesmo o amor entre casal. É sobre uma conexão muito mais espiritual do que carnal. A canção é uma homenagem minha ao mesmo amigo que o Marcelo Rizzatti homenageou com a música “Vagalume”, escrita a partir de um poema meu de mesmo nome. Com esse amigo em comum, o Valmir Klemann, que faleceu num acidente de carro em outubro de 2011, tive alguns bons momentos fora do plano físico visível e palpável da realidade concreta. Como assim? Aí é com a imaginação de vocês. Sei que, para algumas pessoas, homem e mulher juntos só funcionam como casal. É uma pena que a experiência geral a respeito seja tão curta em possibilidades. Sei o que vivi e acredito que todo mundo que tem ou já teve um amigo com astral diferente do comum, alguém com os pensamentos elevados por cima do horizonte, uma pessoa que, por exemplo, tira um pedaço de papel da bolsa no meio do ônibus lotado e recita um poema zen budista às dez e meia da noite de um dia da semana qualquer. Alguém que só com um sorriso e um olhar, sem precisar dizer mais nada, já traz com sua presença toda uma mudança de frequência de pensamento e faz com que a vida ganhe um significado. Uma amizade rara e da qual sentirei eternas saudades. Fazer uma música em homenagem a Valmir também – assim como Rizzatti fez – foi uma forma de lembrar disso tudo. Quando eu escrevi o poema “Vagalume”, não pensava em Valmir, mas quando Rizzatti transformou em música e acrescentou alguns versos para sua canção, ele não me disse nada, apenas mostrou e pediu minha opinião. Eu é que captei a presença de uma saudade de Valmir ali nos acréscimos à letra, “senti saudades de um velho amigo /que fez do céu sua morada”. Acho que captei a mensagem também por causa da menção da letra a “todo o seu brilho nos meus olhos”, porque o olhar de Valmir era mesmo único, capaz de transferir uma luz muito apaziguadora para dentro da gente. Além disso, com o Rizzatti, também tenho esse tipo de conexão que quase não precisa de palavras. Essa sensação boa de trazer o Valmir para nossas vidas de volta, com “Vagalume”, acabou me inspirando a fazer “This is the moment”, afinal continuo ouvindo a voz do Valmir dizendo isso, agora mesmo, enquanto escrevo: “This is the moment”.

Você é escritora, pesquisadora de literatura, jornalista e editora. Tem uma relação com a língua portuguesa que poucos têm. Por que uma letra em inglês? A canção nasceu em inglês?

A canção nasceu em inglês porque nasceu de uma frase que Valmir repetia quando sentia a “epifania” do momento, “This is the moment”, que quer dizer “Este é o momento”, algo que também poderia ser traduzido como “A hora é agora”. Ele tinha essa frase-bordão e uma outra também, “Só depende de nós”, que deixa outra mensagem, a de que na vida precisamos ser ativos, e não passivos. Precisamos acreditar nos nossos sonhos e realizar, passo a passo, degrau por degrau, por mais dura que seja a caminhada, por mais íngreme que seja a montanha. Depende de nós não ficar apenas vendo a vida se esvair dia após dia, momento após momento, e esperando que alguém nos resgate do mar de sofrimento ou das lamentações. Nenhum herói vai nos salvar, a não ser o que existe dentro de cada um de nós como bem disse o Emicida, dos “nós”, das colaborações entre os que vivem este “Momento” em plenitude.

Fala um pouquinho sobre a parceria com o Rizzatti. Identifiquei duas canções em parceria: Vagalume e Just a Garden , além das contribuições nas tuas canções.

Quem começou com isso foi o Rizzatti mesmo, que me escreveu um e-mail perguntando se tudo bem se pegasse um poema do meu livro “Lucida sans” (2017) para uma canção que ele tinha escrito. Falei que tudo bem e ele mandou na sequência a música “Vagalume”, com a faixa já mais ou menos adiantada, gravada por ele no estúdio de Ed Rossi, com a Mônica Possel nos backing vocals. Achei tudo muito lindo, então contei que eu também estava fazendo músicas e queria gravar uns sons meus. Voltei a morar em Joinville em 2014 e, de lá para cá, tive alguns projetos mais ou menos caseiros e colaborativos com pessoas especiais que gostam de fazer um som sem pretensões. Guardo imensa gratidão de todas essas pessoas porque elas me mantiveram ativa e interessada em continuar compondo. Rizzatti ficou sabendo das minhas ideias e então me estimulou a procurar o Ed Rossi para gravar. Muito legal o estúdio do Ed, que na verdade é um quarto do apartamento dele, muito intimista, onde a gente se sente verdadeiramente em casa. Foi assim que nasceram “Convite” e “This is the moment”. As duas são músicas minhas em que convidei Rizzatti para tocar guitarra e, em “Convite”, também para cantar.
Bem, no mesmo ano de 2019 ele estava gravando um EP e precisava de uma voz feminina para fazer backing vocal, tanto para o EP quanto para os shows de lançamento e para sua banda “Marcelo Rizzatti Trio”. Acabei gravando então os backings para o EP e participando da banda durante o ano de 2019, e tocamos nossas músicas autorais e também covers de Neil Young, Tom Petty, Bob Dylan, Eric Clapton. Gosto muitíssimo de combinar vozes e fizemos uns duetos que amei especialmente, como o de uma música de Lukas Nelson com Lady Gaga e outra de Gram Parsons em que cantávamos mais ou menos o mesmo arranjo da versão de Emmylou Harris com Chrissie Hynde. Neste EP dele, “Recomeço”, além disso, ele gravou uma música na qual a letra tem como base outro poema meu, “Just a garden”. Nossa parceria em letras e canções continua ativa e ele está para lançar neste ano umas músicas em que também escrevi alguns versos, se não me engano a primeira delas vai ser “Cidade Fantasma”. Mas parei de participar da banda e de fazer gravações com o Ed porque, com a pandemia, estou realmente reclusa em casa. Tenho uma doença crônica dessas que seriam descritas apenas como “comorbidades” no caso do coronavírus chegar em mim. Sou parente e amiga de médicos empenhados no atendimento a pacientes de Covid-19 e sei que o mínimo que podemos fazer diante da pandemia é tomar o máximo de cuidados para não fazer o vírus circular. Como é praticamente impossível cantar ou gravar em um ambiente realmente seguro, estou desde meados de março de 2020 saindo de casa apenas para o essencial. Não quer dizer que estou parada, mas o ritmo diminuiu um pouco. Neste período de pandemia, gravei uns covers de forma caseira com o Parffit Jim Balsaneli [baixista de Os Depira e Cachorro do Mato] e com o Jeancarlo Reeck [vocalista da Cachorro do Mato], além de participar de uma versão blues para “Just a garden” em uma iniciativa de Rizzatti com amigos dele de Blumenau.

O arranjo de “This is the moment” tem coisas bem especiais, como a guitarra do Rizzatti e o acordeom tocado pelo arranjador Ed Rossi. Esse arranjo complementa bem esse ar de suspiro da canção. O arranjo alcançou o que você queria para a música?

Com certeza! Quando começamos a produzir, sentamos, Ed e eu, para conversar sobre o arranjo. Ele pensou em gaita de boca e eu, nessa “gaita” que eu via minha mãe tocar quando era criança e da qual virei fã para todo sempre. Apresentei então uma versão de “Helpless”, do Neil Young, feita pela banda Cowboy Junkies, que tinha uma combinação muito bonita de guitarra e acordeom. Então já partimos daí. Falei também que adoraria tocar flauta na faixa e mostrei algumas ideias minhas com minha flauta. Como flauta e gaita de boca seria uma combinação estranha, e o Ed falou que adorava acordeom também, mas não tinha o instrumento, ficamos neste impasse. O que fazer? Bem, procurei um amigo de Pirabeiraba que eu sabia que vende e conserta acordeons, o Igor Gaspar. Mostrei a música e então ele foi generoso em emprestar uma de suas melhores gaitas para nós, pedindo apenas que cuidássemos bem dela. Acho que o Ed cuidou muitíssimo bem dela e de todo o arranjo. Ele é um produtor excelente, um verdadeiro conhecedor do que faz, com formação nos Estados Unidos e uma busca incessante do máximo de qualidade. Fico com nó na garganta de falar disso porque já estamos há mais de um ano sem nos ver. Então tenho bastante saudade dele, de ouvir suas ideias sobre música, não só sobre as minhas, mas sobre qualquer música. Tenho saudade de tocar com ele também ao vivo, ver a forma elegante como ele trata o contrabaixo, que é o instrumento dele na banda com o Rizzatti. Ademais, o Ed é um legítimo contador de histórias e tem um ouvido excelente, o que para mim é uma combinação fina de qualidades. Lembro de uma história muito legal que ele me contou de que ele conseguia ouvir, em noites calmas, o “crocitar” do milho crescendo na cidade dos Estados Unidos onde ele morava, creio. Uma pessoa que consegue ouvir o milho crescendo e que consegue criar um arranjo como o de “This is the moment” é no mínimo rara, não é mesmo? Ah! Quanto às guitarras, a gente pediu pro Rizzatti ficar livre. Ele ouviu a faixa já com o acordeom, conversamos um pouco e vimos juntos que ficaria bem adequado um solo bem, digamos, “viajante”. Ele sabia que a música tinha a ver com nosso amigo Valmir. Então, creio que o que ele fez, usando pedal de delay e amplificador valvulado, ficou muito bonito. Ô sorte, a minha!

O jardim, pelo menos nos teus poemas e canções, aparece bastante. É quase como um espaço mágico de reflexão. Tem isso em Vagalume, Justa a Garden e This is the moment. Que jardim é esse que tem nas tuas músicas?

Jardim é algo que está na minha vida diariamente, eu adoro plantas, cultivo algumas, e tenho ainda comigo a enxada da minha Oma Rosita, um símbolo de persistência e de trabalho. Na minha obra poética, aparecem então muitos jardins, não um só. O de “Vagalume” é o quintal de minha casa na Bahia, onde morei por dez anos. O de “Just a garden”, originalmente, era um jardim de um local de Moçambique, relatado a mim por um amigo que estava lá. Já o de “This is the moment” é justamente um jardim ampliado para um conceito mais abstrato, o “jardim da vida”, esse “lugar” onde todos nós estamos. Alguns plantam, outros apreciam. Mas todos podem plantar. Vejo a arte, metaforicamente, ou pelo menos a minha arte, como uma espécie de jardinagem. Dia após dia, o jardineiro, o artista, precisa continuar ativo, não pode se dar ao luxo de esquecer do que cultiva. Se não pegar a enxada, se não observar as fases da Lua, se não entender um pouco sobre podas, se não escolher o adubo certo, não vai haver colheita. Nem mesmo uma flor para apreciar. É também um exercício de espera. Quase nada é imediato em um jardim, assim como na arte. As coisas têm seu tempo de maturação. E eu gosto desse tempo mais lento, assim como adoro jardins selvagens, com árvores antigas convivendo com plantas novas, e sou especialmente uma apreciadora do mato que nasce espontaneamente, e que tanta gente gosta de logo matar com veneno em vez de deixar crescer. Na arte, matar o mato espontâneo com veneno equivale a perder a relação consigo mesmo, intoxicar a própria essência.

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