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04/10/2021Amcle Lima
Na Francisca #23, que está circulando neste início de outubro, você pode ler uma reportagem que mergulha no universo criativo do escritor catarinense Carlos Henrique Schroeder, morador da vizinha Jaraguá do Sul, e no processo de composição do romance “As Fantasias Eletivas”. Já a Francisca on-line traz uma entrevista sobre o curta “Copi”, baseado no romance de Schroeder, exibido no 4o Festival de Cinema de Jaraguá 2021, pela plataforma InnSaei.tv.
Esse conteúdo faz parte de um especial produzido especialmente para a revista, em alusão aos sete anos de “As Fantasias Eletivas”. Lançada em 2014, a publicação foi uma das apostas da Editora Record para a Bienal do Livro de São Paulo daquele ano. O romance já está na oitava edição, foi indicado para leitura nos vestibulares UFSC e Udesc em 2016, Acafe 2016, 2017 e 2018, traduzido na Espanha pela Maresia Libros e resenhado no jornal “El País” de Madri, além de semifinalista do Prêmio Oceanos 2015 e prêmio de Melhor Romance da Academia Catarinense de Letras em 2014.
O enredo do romance se passa em Balneário Camboriú e conta a inusitada amizade entre um recepcionista noturno de um hotel, Renê, e Copi, uma travesti nascida na Argentina, que vive de fazer programas com turistas da cidade litorânea catarinense. Copi é, também, escritora e fotógrafa amadora, que escreve poemas e textos a partir das fotos que produz. “As Fantasias Eletivas” é um livro dividido em três: uma parte narrativa, uma parte relativa aos textos sobre as fotografias feitas por ela, e outra, ainda, um livro com as poesias da argentina. A história aborda temas como solidão, fotografia e fazer literário. A seguir, a entrevista completa do escritor, que aborda essas e outras questões presentes em seu livro.
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Uma obra geralmente se inicia antes de sua execução. Você consegue identificar qual foi a faísca que iniciou “As Fantasias Eletivas”?
O livro é uma espécie de universo expandido de um conto meu, chamado “Os Recepcionistas”. O conto está no livro “As Certezas e as Palavras” (2010) [o livro completo pode ser acessado na página de Carlos na internet (https://www.carloshenriqueschroeder.com.br/EBOOK_ASCERTEZASEASPALAVRAS.pdf)] e lembro que chegou a ser publicado na íntegra no saudoso “Anexo”, de A Notícia. Bons tempos em que havia cadernos de cultura pelo Estado. No conto, há uma abordagem mais sociológica da rotina de um recepcionista de hotel, mas também levando em conta a linguagem enquanto vertigem. No romance, surgem outros espasmos, e a protagonista é uma travesti, a Copi, que não aparece no conto. Mas o coprotagonista Renê, esse sim, já está lá no conto. Mas quando surgiu tudo isso? Na verdade, as histórias não surgem, elas se emprestam, vão se conectando por camadas, você tem uma experiência daqui, uma ideia de lá, um perfil de personagem de acolá, e, quando percebe, está colocando ordem no caos e pronto, temos uma narrativa. Não é mágico, não é divino, é simplesmente humano. O ato de contar histórias existe há milênios, o que vale, ao menos no campo da literatura, é a forma que vai contar essa narrativa. Voltando ao “As Fantasias Eletivas”, eu misturei em um caldeirão algumas referências literárias, outro punhado de obsessões, algumas dúvidas sobre escrita criativa e fotografia e a experiência de ter trabalhado alguns anos como recepcionista de hotel em Balneário Camboriú. E plim: habemus livrum.
Na internet, você cita variadas atuações profissionais que teve, de DJ, publicitário, diretor de jornal, até vendedor de roupas e carros. Uma destas atuações profissionais foi a de recepcionista de hotel. O que poderia nos contar dessa sua experiência e como isso inspirou na escritura de “As Fantasias Eletivas”. Poderia contar também algum episódio dessa experiência de trabalhar em hotel (algum fato marcante ou situação inusitada)?
Entre os 19 e 22 anos, trabalhei em vários hotéis. Muitos contratavam apenas para a temporada de verão, então você se via no olho da rua no inverno, fazendo bicos de toda espécie, e depois ia para outro hotel, geralmente entre novembro e março, os famosos seis meses de ouro do turismo litorâneo catarinense. Mas trabalhei quase um ano em um deles, no período noturno, das 23h às 7h. Bom, isso já faz mais de vinte anos, era outra época, não havia redes sociais, smartphones, câmeras de segurança por todo o lado, era no final dos 1990 e no início dos anos 2000. Vi muitas coisas, principalmente no período noturno, já que em cidades turísticas como Balneário Camboriú as pessoas se soltam mais, mostram quem realmente são. Já salvei gente na piscina (um senhor que queria se suicidar), vi gente morrer no saguão do hotel (infarto), brigas e agressões de todo o tipo, e um catálogo de quebradeiras e gemedeiras nos quartos. Enfim, tudo dentro do padrão classe média brasileira deslumbrada que frequentava a cidade. Nunca me senti deslocado, era o meu trabalho, recebia para resolver problemas, meu rosto era a primeira barreira do hotel, o filtro.
Qual a sua relação com Balneário Camboriú (onde “As Fantasias Eletivas” se passa)?
Morei uns dez ou onze anos lá, em duas fases da minha vida. Entre 1986 e 1993, e depois de 1998 a 2001. Meus pais, que são divorciados, ainda moram lá. Assim como uma irmã e meu irmão mais novo. Só vou visitá-los ou a trabalho. Não gosto daquela pegada ostentação e prédios altos da cidade; quando posso, vou me entocar e veranear nas praias de Garopaba, faz mais o meu tipo. Balneário Camboriú é refém de seu sistema imobiliário, e o problema é que essa verticalização desenfreada é uma referência e realidade para outras praias do Estado, como Piçarras e Itapema. Não sou contra o desenvolvimento, o dinheiro, o conforto, mas tudo tem limite. E Balneário Camboriú já passou do limite faz tempo. É como aquelas senhoras ou aqueles senhores que exageraram em cirurgias plásticas, e hoje parecem um saco plástico.
Fale um pouco sobre a homenagem que “As Fantasias Eletivas” faz a Copi (Raul Taborda Damonte). O que mais te impressiona na obra dele?
Copi (1939-1987) foi um gênio que atuou em várias frentes: dramaturgo, caricaturista e romancista, sempre com um olhar muito à frente de seu tempo. É o tipo de pessoa que o Ezra Pound chamaria de “antena da raça”.
Gostaria que falasse um pouco sobre as fotografias de “As Fantasias Eletivas” e sua relação com a fotografia. As fotografias foram tiradas especificamente para o livro?
Fotografia e literatura caminham há muito tempo juntas, no “Nadja” do Breton, em alguns Cortázar, no Sebald. Sou um fotógrafo frustrado, gostaria muito de entender a técnica fotográfica. E, como não existe melhor forma de dominar uma obsessão do que escrever sobre ela, eis um livro que dialoga com a fotografia. E sim, essas fotografias foram todas tiradas para o livro, mas eram mais de uma centena, e ficaram apenas aquelas que encarnavam o espírito da personagem. Aquelas que atravessavam as questões primordiais da personagem, da Copi. Eu bati todas as fotos e os textos surgiram de cada uma das fotos. Foram meses batendo fotos e escrevendo esses textos híbridos, que ora parecem poemas em prosa, ora nanoensaios, ora micronarrativas. Primeiro a imagem, depois a palavra.
Como foi feita a foto da menina no trilho? Você pode revelar em que lugar foi capturada a foto?
Essa foi realmente especial. Gosto muito de caminhar pela cidade e estava na principal ciclovia do Centro de Jaraguá do Sul, que em vários trechos tem um espaço para pedestres, e, em outros, vai lado a lado com o trilho do trem. Quando vi aquela menina, ali, paradinha, agachada, pensando ou brincando, foi algo instantâneo. Quando percebi, já tinha feito uma série de fotos dela. Hoje, ela deve ser uma adolescente, uma mulher. Espero que não me processe no futuro, como o bebê da capa do disco do Nirvana.
Na foto do texto sobre a solidão do espelho, você aparece. Por quê?
A Copi, no livro, em vários momentos reflete sobre o ato da criação literária, eu quis trazer mais alguns complicadores e disparadores para a narrativa, mostrar mais uma camada. A literatura é um jogo, o leitor percebe facilmente as peças, sempre, mas eu mostrei o jogador também.
“O que me move para a fotografia são as similaridades com a literatura. A fotografia quer congelar um instante, e a literatura, recriá-lo, e ambas têm essa capacidade de permitir uma outra visão das coisas… afinal, criar e contar histórias é desvelar imagens”. Para mim a fotografia também recria a realidade. Pode falar um pouco sobre esse trecho e a relação da literatura e fotografia para você.
“Entre as muitas maneiras de se combater o nada, uma das melhores é tirar fotografias”, já avisava o escritor argentino Julio Cortázar em seu clássico “As Babas do Diabo”. Afinal, a fotografia “é o que nos arremessa mais para fora de nós” (ainda Cortázar). Com um clique, você fotografa, e com outro, compartilha, em uma ou mais redes sociais, num segundo você fotografa e no outro, zap, o mundo todo, a rede. Milhões de fotos, todos os dias, para um mundo que vai apagando a palavra, escrita e falada, e substituindo por signos gráficos e fotográficos. A fotografia, hoje, é uma espécie de sentido, como o tato ou olfato, e não à toa que todos os dispositivos móveis pessoais, como celulares, tablets, computadores, vêm com câmeras fotográficas, pois elas se tornaram indispensáveis: num mundo saturado de informação como o nosso, as fotografias são uma espécie de segunda memória, é para lá que você corre quando quer lembrar os melhores momentos de uma viagem, de seu casamento, de sua família, do final de semana. É nossa memória externa.
Mas o que me move para a fotografia é a distância entre o fotógrafo e a fotografia, e suas similaridades com a literatura. Algo que o ensaísta inglês Geoff Dyer levanta muito bem num trecho de seu ensaio “Sonhos Antigos, Sonhos Novos”: “Às vezes, creio que o elemento definidor de minha interpretação pessoal de fotografias deriva do fato de que, durante anos, nunca pensei em quem as havia tirado. Na realidade, é mais do que isso. Além do fato de que um botão tinha sido premido, nunca me ocorria que as fotografias eram produzidas por uma pessoa. Para mim, as fotografias se reduziam a quem ou que aparecia nelas. Meu interesse pela fotografia nasceu no momento em que soube que uma foto de D. H. Lawrence que eu admirava bastante tinha sido feita por Edward Weston, uma figura famosa – vou usar apenas esse adjetivo – na história desse meio expressivo. Antes desse dia, havia minha maneira antiga de ver fotografias; depois dele, a maneira nova”. Então, ver além da fotografia é como ver através de um texto, ultrapassar o primeiro significado.
Gosto de utilizar chaves de leituras para interpretar obras artísticas, sejam músicas, filmes e livros. Um exemplo banal: gosto de interpretar “A Metamorfose”, de Kafka, como a história de um amor platônico e incestuoso. Isso me permite voltar a história e conferir minha interpretação. Fostei de interpretar “As Fantasias Eletivas” como uma representação de dores suas (as dores de um escritor preso numa gaiola de recepcionista de hotel) que vê seu eu poeta/escritor morrer sem ser lido por mais ninguém (um pesadelo para um escritor). Aceita fazer um comentário sobre essa interpretação?
Muito interessante sua interpretação. Respeito todas as interpretações, porque essa é a magia da literatura, deste jogo que se estabelece entre o produtor do texto e o leitor. Algumas leituras são sociológicas, outras psicanalíticas, há também as estritamente literárias e… Enfim, veredas infinitas. “As Fantasias Eletivas” é um livro cheio de lacunas, que vale também por aquilo que está escondido, não dito, e isso abre um leque ainda maior de leituras. Então todas as interpretações são possíveis.
Na sua opinião porque “As Fantasias Eletivas”, recebeu esse reconhecimento do público. Algum momento marcante da trajetória do livro até aqui?
Em 2014, não havia muitos livros publicados por grandes editoras (com poder de distribuição e divulgação) protagonizados por uma travesti. E estávamos no auge da discussão dos direitos inalienáveis das minorias (essa discussão, inclusive, retrocedeu nos últimos anos, com a emersão de uma casta política menos esclarecida e mais preconceituosa). Então, o livro foi recebido de portas abertas pela grande imprensa cultural brasileira. E isso possibilitou o livro circular mais e melhor, chegar a mais leitores. Mas a minha grande alegria foi quando o livro entrou nas listas dos vestibulares em Santa Catarina, porque aí o livro caiu na mão dos professores do ensino médio, que fizeram trabalhos incríveis, e eu pude visitar dezenas de escolas públicas e privadas e conversar com alunos. Foi lindo. As pessoas, os gestores culturais, o governo, todos subestimam a carência e o poder interpretativo dos nossos jovens. Precisamos, enquanto sociedade, oferecer conhecimento e cultura para essa geração, para quem sabe termos um pouco de esperança e nos livramos dessa horda de brucutus que ousa botar seus preconceitos e recalques para fora da boca. É essa minha utopia.
Qual a sua impressão do curta-metragem “Copi”, do André Gevaerd?
Eu adorei, traz um olhar diferente, até mais complacente, e os atores dão um show, o Renato Turnes e a Mariana Genésio Peña.