Jura Arruda fala da experiência com a OMUNGA na Amazônia

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Foto: Daniel Machado

Eram 9h45 de sábado quando fechei a mala, imaginei ter selecionado tudo que precisava. A Clarice, atriz da Dionisos ficou de passar aqui para irmos juntos até o local do encontro com outros quatro dos dez membros da equipe da Omunga: o cineasta Anderson Dresch, o produtor de audiovisual Diego Nascimento e o Saimon Alves, responsável pelos trâmites da viagem.

Nove horas depois desembarcávamos em Manaus onde nos encontramos com o idealizador da Omunga Roberto Pascoal, a coordenadora pedagógica Ana Carlota, o curador de conhecimento André Freire e o cinegrafista do Profissão Repórter Maycom Mota.

A viagem mal começara. Tínhamos pela frente ainda 36 horas de barco, mais uma hora de estrada ruim até Atalaia do Norte, nosso destino. A bordo da lancha Soberanna, a imensidão do Solimões imprimia minha pequenez diante do mundo, ainda que o convite para esse trabalho me fizesse sentir maior, dono de minhas ambições e sucesso. Uma árvore de folhas brancas à margem do rio, palafitas ribeirinhas isoladas e o olhar manauara de um menino com características indígenas diziam que eu jamais conseguiria ter colocado na mala tudo o que precisava para essa viagem.

Amazônia é um lugar

A Amazônia sempre me pareceu um pouco coisa de literatura, de ficção. Durante as 36 horas de viagem, por diversas vezes fui à popa da embarcação para olhar a imensidão do rio e tentar me situar num mapa imaginário. Eu estava em meio à mata, irmão de onças e jacarés. Infelizmente, o barulho do motor da lancha não me permitia ouvir os sons da Amazônia. Casas muito isoladas nas margens iam ficando para trás, de um lado Brasil, do outro Peru. Vi um por de sol alaranjado, vi um alvorecer sobre as águas que as primeiras luzes da manhã prateavam. O celular sem sinal virou câmera fotográfica.

A chegada em Atalaia do Norte foi de festa e gastronomia, num evento de recepção preparado pelos professores da cidade. Uma moça com traje de fitas e pés no chão puxou-me pelo braço e, quando vi, dava passos em uma ciranda indígena. Assim fui recebido e, por que não dizer, batizado.

Nos dois dias seguintes, dedicamo-nos às oficinas de formação de professores. A orientação de Carlota era de que devíamos aproveitar para ouvir, buscar dados e tentar entender a realidade de Atalaia, o que serviria de base para as próximas etapas do projeto. Diversos temas foram abordados, da arte à política, das lendas à realidade do município. O saldo não poderia ser mais positivo: brilho e gratidão no olhar dos professores. Como guardar na mala isso e todo sentimento a que fomos expostos?

É lenda, mas aconteceu

Atalaia vive do extrativismo. A pesca e a caça são suas principais atividades. Há um Bradesco e diversos “postos de gasolina” constituídos por uma mesa de madeira na calçada com gasolina em garrafas Pet. Há uma praça onde os jovens se reúnem, e incontáveis igrejas evangélicas. Há muita sujeira no chão de Atalaia, onde dividem espaço motos e cachorros.

 Divisa com Peru e Colômbia, o Vale do Javari acumula histórias e lendas. Ao perguntar sobre boto, curupira, bate-bate ou cobra grande, os relatos iniciam com “É, isso é lenda”, mas no meio da estória o contador afirma ser verdade, “aconteceu com um primo meu, eu vi”.

Entre as lendas e os compromissos do projeto, provei a famosa carne de jacaré e um saboroso pirarucu frito; vi na margem peruana do rio Javari o comércio ilegal de tracajás – cágados com carne Muy saborosa, como disseram; provei frutas locais com sabores exóticos demais para meu paladar. O coentro e o coloral são usados em abundância. Em abundância também foram os problemas estomacais da equipe.

Todos sobreviveram.

Aldeia indígena

A bordo de um “200” – embarcação com motor de 200 hps, voltamos ao rio Javari na sexta-feira para mais sete horas de viagem até a aldeia São Luís (você não esperava por um nome indígena?), onde vive o povo da etnia Kanamari. Guiados pelo prefeito Nonato, a secretária de Educação Maria Edimar e o vereador e líder da etinia, Korá, chegamos à aldeia na hora do almoço. Korá seguiu na frente, foi pedir autorização para nossa entrada. Minutos depois voltou com a notícia de que éramos bem vindos.

Encontramos as primeiras crianças, muito curiosas e sorridentes, e mulheres que nos acompanharam entoando um cântico em sua língua até uma maloca muito grande e redonda com cobertura de palha, onde o cacique Mauro nos esperava. Naquela tarde, homens, mulheres e crianças se mobilizaram para confeccionar os adereços que seriam usados em uma apresentação cultural para nós, prova de sua hospitalidade e orgulho.

Andamos livremente pela aldeia, visitamos malocas, conversamos, fizemos fotos. Em um determinado momento, vi surgirem da mata alguns homens que traziam às costas um mutum e pedaços do que fora uma anta, frutos da caça que seria dividida entre todos os habitantes da aldeia. Dormimos em redes, acordamos cedo, em nenhum momento lembramos que era sábado. Por lá as datas importam menos que o sol erguendo-se por trás da mata. A viagem de volta nos colocou de volta ao calendário. No dia seguinte, iniciaríamos nossa volta.

Terminei de fazer a mala às 11 horas de domingo, ainda sem a noção exata do que vivi aqueles dias no extremo oeste do Amazonas, lugar que se parece tão mais com o Brasil. Havia mais silêncio na viagem de volta e não era só cansaço, era introspecção, desejo de olhar para dentro e reconhecer-se depois de tudo o que foi vivido ali.

1 Comments

  1. Elieser Ruiz disse:

    Emocionante Jura, lindo relato, é possível imaginar um tiquinho o que viveste.

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