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09/04/2020Néri Pedroso, jornalista, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), especial para Francisca
Não é possível dissociar a arte contemporânea da cidade. Amplo campo de significações, a urbe entrecruza a economia, a história, a política, um conjunto de práticas culturais que, ao fim de tudo, traduz-se como aglutinação de problemas e contradições sociais. Argan, historiador italiano, afirma que a arte é uma das linhas mestras de desenvolvimento da civilização, um agregado de fenômenos, um nó de relações, uma força de incidência imediata que representa um determinado tempo, um dado da existência humana. No rastro do pensamento arganiano, como é possível numa geografia em ruínas situar a produção de artes visuais de Joinville em 2020 nas suas características de maior cidade e maior contingente populacional de Santa Catarina, à frente da capital Florianópolis, a 21ª posição nacional no índice de desenvolvimento humano?
À luz da história da arte de Joinville, em bloco e em síntese, o que é relevante no sistema de arte de Santa Catarina? Como o local se move e se projeta em relação ao próprio Estado e ao cenário brasileiro? A arte denota particularidades de uma cidade industrializada, quer na fatura, na materialidade, nas experiências do passado e no engajamento. Heterogênea, híbrida, ela se sedimenta em noções históricas e atitudes de resistência sobretudo entre os anos 1970 e 1990. No atual momento, uma possível aproximação entre poéticas com técnicas e conceitos distintos se dá pela natureza colaborativa das ações, pelo feixe corpo, imagem e representação e pela vitalidade histórica das performances.
Ao ocupar o espaço público em 1989, as esculturas de balde de Schwanke apontam a cidade como um campo aberto para experiências sensoriais. No mesmo ano, um grupo de alunos do curso de educação artística da Universidade de Região de Joinville (Univille) faz as primeiras aparições do Grupo Performance Papirus. Mordazes, os precursores apostam na crítica social. Em 2002, apresentam na 32ª Coletiva de Artistas de Joinville “O que agoniza em Joinville”, uma análise feroz sobre o panorama cultural da cidade que, transposta para 2020, se mantém atual, afetando os artistas, os curadores, os pesquisadores, o mercado, os projetos de relevância.
Pelas poéticas, volume de exposições e visibilidade, Sérgio Adriano H., Franzoi, Cyntia Werner, Jan M.O, TiroTTi, Linda Poll, Priscila dos Anjos, Rogério Negrão e Ricardo Kolb se destacam na resistência, assumem riscos, esticam a corda e se enquadram no termo artista etc que sinaliza a complexidade de uma atuação neste campo de conhecimento na contemporaneidade. Além de um produtor de obras, em atuação transdisciplinar, no entrecruzamento de diferentes saberes, é preciso criar, mediar, escrever, falar, conversar, agenciar.
Combativos, desde 1971 na criação e continuidade da Coletiva de Artistas, os intrépidos artistas sempre buscaram cidadania cultural e participação ativa, engajados em 1976, na constituição do Museu de Arte de Joinville (MAJ), em 1981 na fundação da Associação dos Artistas Plásticos de Joinville (Aaplaj), em 2002 na criação do Museu de Arte Contemporânea Luiz Henrique Schwanke. A cidade e a política se entrecruzam. Os efeitos da criminalização da cultura – fenômeno que se acentua no país –, o desmantelamento da Fundação Cultural de Joinville, gestores inábeis, instituições fragilizadas, editais e recursos, a interdição da Cidadela Cultural Antarctica destroem a projeção do lugar que, em recente passado, disputava a hegemonia cultural do Estado, ao ponto de artistas da Capital fazerem questão de expor em Joinville e, inclusive, doar obras ao acervo do MAJ. Arte na escassez, desassossegados com a realidade local, os envolvidos mudam suas estratégias para expor e garantir representatividade.
“Considerando tudo o que a cidade já produziu em décadas anteriores, é notória a queda. A geração que atuou na década de 1980 ainda é insuperável em relevância e volume de produção. Os artistas seguem produzindo, mas pouco se vê e nada se discute. O esvaziamento é evidente, tanto nos espaços públicos quanto nas atividades culturais, oficiais ou não, onde havia discussão de conteúdo, fomento para novos talentos e formação de público”, avalia Rogério Negrão.
Para Adriano H., “Joinville é um grande produtor de artes visuais, um lugar vivo pensante, com artistas dedicados. Temos nomes com destaque estadual, nacional e internacional”. Nesse cenário, aponta o valor do curso de graduação de artes visuais na Univille e a Aaplaj com exposições mensais. Relevante, de acordo com ele, é a inserção de artistas em grandes eventos como as bienais de Curitiba, de Brasília, da Argentina e premiações em editais e salões. “A força, a pesquisa, o processo e o amadurecimento revela novos artistas, como Jan M.O.”, diz.
Contra a melancolia, como elo vitalizante, destacam-se o Instituto Juarez Machado, para o qual convergem artistas de outros lugares, além de visitantes vindos de todos os Estados brasileiros. A Galeria 33, especializada em arte contemporânea, atua na assessoria curatorial e potencializa investimentos na revenda e aquisições de coleções particulares e públicas. Inegáveis também o papel da Galeria de Arte do Sesc e a atuação do Picta Escritório de Arte que realiza projetos relevantes.
Nova sinalética
Um termômetro, entre outros, sobre a projeção de Joinville é a exposição “Fronteiras em Aberto – Polo SC”, que, inserida na Bienal Internacional de Curitiba em 2019, vislumbra um panorama no Museu de Arte de Santa Catarina (Masc). No recorte da curadoria, entre os 58 artistas, a representação da cidade se dá com Andrey Roca, Cyntia Werner, Jan M.O., João Miot e TiroTTi. Polo SC também legitima mostras individuais de Sérgio Adriano H. e Franzoi. A concepção curatorial propõe “uma linguagem antídoto contra o fundamentalismo, a visualidade instrumentalizada, que ainda abriga um singular benefício espiritual”.As revelações imagéticas e a nova sinalética de Sérgio Adriano H. mostram suas antenas e dor ao expor “Índice”, na Fundação Cultural Badesc, e em Franzoi, “almacorpoterramar”, no Espaço Cultural Armazém – Coletivo Elza. Com montagens de excelência, são dois momentos potentes instaurados na capital. Sérgio(mais carne) arrebata ao mexer na delicada questão do racismo no Brasil, e Franzoi (mais alma) faz exposição e performance nas águas do bairro Sambaqui, “uma experiência porosa”, de acordo com a curadora Juliana Crispe. “Fora do âmbito artístico, Franzoi deve ser referenciado como curador, com forte atuação em Joinville e capilaridade em todo o Estado. Sérgio Adriano H. conduz a carreira em permanente movimento entre Joinville e São Paulo. Vive de sua arte, algo raro no Estado. Arguto, retoma urgências discursivas e artísticas do passado, articula-se e compreende a profissionalização do artista como poucos.
Arte do inconformismo
A linguagem antídoto, a questão identitária, a memória afetiva e o fim das fronteiras adensam a produção joinvilense. Carreira exponencial, Jan M. O., da diretoria da Aplaj, pesquisa as práticas da gravura e a criação de objetos. Por formação, interessado nos processos manuais e industriais, aposta na tridimensionalidade e nos múltiplos. Já tem prêmios aquisição e individuais realizadas em seis Estados brasileiros.
Com sofisticada pesquisa, Rogério Negrão produz videoarte, fotografia, instalação sonora, colagens digitais e objetos interativos. Discute o sentido, a concepção e atribuição dos objetos – “através do nome, do material, da estrutura física, da função ou de sua falta”. Desloca a experiência em design de produtos para projetar máquinas imaginárias, descritas a partir de desenhos e patentes. “Horizonte Portátil”, “Compactador de Lucidez”, “Purificador de Erros”, “Estabilizador de Imprevistos” e “Neutralizador de Medo” são máquinas sensoriais que desdobram a percepção do espectador. “A influência da cidade industrial é notória desde o início da trajetória, traz a relação do fazer interno da indústria com o fabricar da mente pensante”, considera ele.
TiroTTi projeta Joinville com videoarte, trabalhos em que transita entre os limites do olhar, busca o invisível para recriar paisagens e situações, rompe as noções de território, tempo e espaço. Diz que “centra suas traduções de signos e significantes e segue pela linha da imagem para transpor meios e materiais”. O design industrial – na cor, na materialidade – está nas pinturas de Ricardo Kolb que começa 2020 exuberante na Galeria 33. Representante da Geração 90, por sua importância está no acervo do Masc com obra emblemática. Cyntia Werner contagia sua poética com um “faz de conta” que desestrutura o modo de pensar sobre algo. Com outras noções operatórias, Priscila dos Anjos e Linda Poll discutem questões de gênero, tratam do dizível e indizível, têm o corpo e a memória como objeto para pensar a existência feminina.